Dona Lena, a cozinheira de três governadores de Santa Catarina na Casa d’Agronômica

Dona Lena é a catarinense Lenir de Souza, 73 anos, que trabalhou para os governadores Luiz Henrique da Silveira, Leonel Pavan e Raimundo Colombo na Casa d’ Agronômica, além de cozinhar para visitantes ilustres da residência oficial do poder em Santa Catarina, como os presidentes Fernando Henrique Cardoso e Lula.

Texto e entrevistas: Ângela Bastos
Fotos: Diórgenes Pandini
Arte: Antonio Machado

É batata! A comida sempre desperta lembranças. Seja sofisticada ou caseira, traz à tona o sabor da memória e o perfume de um tempo que já passou. Um cheiro, um sabor, e pronto. Que o diga Lenir de Souza, a dona Lena, 73 anos, cozinheira que serviu três governadores e dois presidentes da República nos quase 10 anos em que trabalhou na Casa d’Agronômica, em Florianópolis. Incontáveis convidados ilustres – entre eles, Fernanda Montenegro e Guga Kuerten – provaram de suas mãos o tempero do afeto.

Filha de pescador e de uma dona de casa que cursou apenas o segundo ano primário, nasceu na Ponte do Imaruí, em Palhoça. Entre nove irmãos e o trabalho duro na roça, aprendeu cedo que a fartura nem sempre vem da mesa posta, mas do coração disposto. Nunca fez cursos nem estudou gastronomia: aprendeu com a vida, sua grande mestra. Descobria receitas, trocava ingredientes, provava, reinventava. Aprendeu de ouvido, de olho, de alma. Foi assim que nasceu o famoso Sorvetão, uma torta caramelizada que virou lenda entre os jornalistas que frequentavam o antigo palácio.

– Se eu disser que minha comida perfuma a cozinha, a casa e o quintal, você acredita? – pergunta ela, com o sorriso de quem sabe o valor do que faz.

Pelo cheiro do pão e do café que invade a sala, dá para acreditar. Dona Lena vive com o marido numa casa erguida tijolo a tijolo, no Monte Cristo, área continental de Florianópolis. Brinca que o lar foi construído “de grão em grão, como a galinha que enche o papo”. É mãe de uma filha, que criou sozinha, e segue cozinhando sob encomendas.

– Minha preocupação é fazer o serviço com perfeição. Não importa se quem vai comer tem poder ou cargo. Eu faço com amor.

E é justamente esse amor que tempera a história dessa mulher trabalhadora.

Reportagem de Ângela Bastos e Diórgenes Pandini apresenta Dona Lena, cozinheira na Casa d'Agronômica nos governos LHS, Pavan e Colombo
Lenir de Souza, a Dona Lena.

LHS: grandes jantares, cheirinho de pão caseiro e o pirão de feijão

A fama de boa cozinheira corria solta quando um amigo avisou a Lenir que havia uma vaga na cozinha do palácio. Experiente com panelas e temperos, ela não pensou duas vezes: apresentou-se à empresa terceirizada e, poucos dias depois, estava de avental novo na Casa d’Agronômica.

O primeiro governador para quem teve a oportunidade de mostrar o talento foi Luiz Henrique da Silveira (PMDB), eleito em 2002 e reeleito em 2006. Dona Lena, até então, não fazia ideia de que LHS – como era chamado – fosse tão eclético: um apaixonado por dança, música e, principalmente, por boas conversas em torno de uma mesa farta.

No começo, ela estranhou o ritmo do casal Luiz Henrique e da primeira-dama Ivete Appel da Silveira, hoje senadora pelo MDB.

– A gente tinha hora para começar, mas não para terminar – conta, rindo.

Mas reconhece uma coisa boa:

– Quando havia banquete, eles chamavam reforço.

O pão de Dona Lena cativou então primeira-dama Ivete da Silveira na Casa d’Agronômica.

Apesar da pompa de alguns encontros, ela garante que o governador e dona Ivete eram de uma simplicidade encantadora.

– Luiz Henrique gostava de uns grãozinhos de feijão no prato, mas não renunciava ao pirão, arroz, bife e ovo frito. Dizia que isso era comida de verdade – brinca.

Dona Ivete, tinha um fraco declarado: o pão sovado a mão feito pela cozinheira. Mesmo com cardápios supervisionados por nutricionista, o tempero de Lena conquistou o casal.

– Muitas vezes, o motorista me pegava cedinho: levavam para casa deles, em Joinville. Dona Ivete já avisava: “Não esquece do meu pão!” – lembra.

A pele de pêssego de FHC, o abraço de Lula

De tantos jantares e visitas ilustres, duas ficaram gravadas na memória de Lena: Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva.

Do encontro com FHC, em outubro de 2011, ela não recorda o menu – mas jamais esqueceu as feições do ex-presidente.

– Aquela pele de pêssego! Meu Deus! Não sei como ele está hoje, mas naquela época, Fernando Henrique tinha o rosto lisinho, dava até vontade de tocar.

Já a visita de Lula, em outubro de 2007, teve outro sabor – até porque ele ainda exercia o cargo de presidente da República.

O anfitrião, LHS, fez questão de levá-lo até a cozinha. Lula agradeceu aos trabalhadores, posou para fotos e transformou o dia comum em festa.

– Foi lindo. A comitiva, os batedores, o carro entrando pelos portões. Na hora da foto, fiquei lá atrás, abraçadinha no presidente. Ele e o governador tiraram foto com a gente. A gente está ali para servir, e eles vêm agradecer. Isso emociona.

Anos depois, quando Luiz Henrique morreu, em 2015, Lena sentiu como se perdesse alguém da família.

– Tive muita vontade de ir à despedida (em Joinville), mas não conhecia ninguém de Florianópolis que fosse. Acho que choraria como se fosse um parente. A gente pega afeição pelas pessoas – diz, com a voz mansa de quem ainda sente o cheiro do café que servia na residência oficial do chefe do Executivo catarinense.

Dona Lena guarda com carinho a lembrança e a foto do encontro com Lula na cozinha do palácio.

Leonel Pavan chega com fogo de chão, churrasco e gaiteiro

Acostumada a protocolos, reuniões e cerimônias oficiais, a Casa d’Agronômica certa vez se viu transformada em cenário de festa campeira. O responsável pela façanha foi o governador Leonel Pavan (PSDB), que em 2010 assumiu o governo após a renúncia de Luiz Henrique da Silveira para concorrer ao Senado. Ficou menos de um ano no cargo (março a dezembro), mas o bastante para dar ao antigo palácio um ar de improviso, cheirinho de churrasco e até música de gaita.

A cozinheira Lena lembra como se fosse ontem.

– Ele mandou arrancar os paralelepípedos para fazer churrasco no fogo de chão. Trouxe até gaiteiro! Eu saí dançando.

Pergunto se dançou com o governador.

– Não, dancei sozinha.

Nascido na gaúcha Sarandi, criado em Ponte Serrada, mas feito político em Balneário Camboriú, onde por três vezes foi prefeito, Pavan tinha gosto por variar sabores, recorda Lena. Entre todos, havia um prato que o conquistava sempre: o “Camarão crespo”, quando a iguaria é empanada, frita e depois coroada com queijo ralado. Era sua preferência gastronômica.

Também houve rumores difíceis de engolir: que o novo governador sonhava em transformar a Casa num museu ou centro cultural. Ideia ousada, mas que nunca saiu do papel, embora até hoje exista quem defenda que o lugar deva ser acessível à população. 

Outra lembrança: um pratinho de pizza com o brasão oficial do Estado de Santa Catarina.

Lembranças que mistura política e boa vivência

O breve convívio com os Pavan foi suficiente para conquistar a dedicada cozinheira.

– Eu achava o governador bem divertido, um homem simples, com um jeito de falar bem popular. Dona Dete (a ex-primeira-dama Maria Bernardete Pavan) também era querida e educada com a gente.

Nos fins de semana, quando a família Pavan ia para o sítio em Camboriú, Lena muitas vezes era convidada para cozinhar. Ganhava um dinheirinho extra e colecionava histórias.

– Seu Pavan montava no cavalo e sumia no meio do mato. Dona Dete ficava cuidando das coisas da casa, conversando com filhos e amigos – diz.

Na Casa da d’Agronômica, cada governador deixa sua marca. A de Pavan, pelo jeito, com gosto de churrasco e som de gaita.

Na cozinha do poder, Colombo se mostra um governador de gosto caseiro

O ciclo de Dona Lena na Casa d’Agronômica terminou no primeiro governo de Raimundo Colombo (2011–2014). Colombo deixou uma marca registrada – a simplicidade. À mesa, era como se estivesse em sua própria casa, em Lages. Preferia arroz, feijão, frango ou carne, purê de batata, saladas. Só nos dias de cerimônia é que o cardápio ganhava traje de gala: filé mignon ao molho madeira, camarões à milanesa, salmão enfeitado com maracujá.

Mas o retrato que ficou não é de banquete: é de Colombo, logo cedo, com seu chimarrão em punho. E nem era Lena quem preparava a cuia, mas o seu Osvaldo, motorista fiel desde os tempos de prefeitura em Lages. Governador com chofer para matear – eis uma das cenas curiosas da política catarinense.

Na cozinha, porém, a fama não ajudava. “Más línguas” garantem que Colombo não sabia sequer preparar um café, fritar um bife ou botar arroz no fogo.

– Nem churrasco? – alguém se arrisca.
– Nunca vi! Mas vai saber, lá em Lages…

A reportagem foi conferir: Nem churrasco!

Família e boas memórias

O produtor rural da Coxilha Rica não se atreve diante da churrasqueira. Uma fonte próxima jura que ele próprio reconhece a limitação e culpa a infância: sete irmãs (dez filhos no total) e uma mãe generosa, dona Tereza, que não deixavam sobrar nem a tarefa de descascar uma batata.

Lena, por sua vez, guarda lembranças ternas da primeira-dama, Maria Angélica, discreta e elegante. Não chegou a viajar com a família para a Serra, mas percebeu que todos levavam com leveza a vida provisória na Casa D’Agronômica.

– Uma vez, logo no começo, vi um dos filhos perguntar se podia abrir uma garrafa de vinho. São essas pequenas delicadezas que marcam a gente, sabe?

Lena conta que gostaria de ter ficado mais tempo na Casa d’Agronômica, lugar onde deixou muitos amigos. Mas que compreende sobre as mudanças feitas quando ocorre a troca dos mandatários. Para ela, a realidade no palácio é igual para governantes e governados:

– A vida ali é transitória. Por isso, cada um tem que dar o seu melhor.

De palácio a Casa d’Agronômica, a sede do poder em SC

A Casa d’Agronômica antes da reforma realizada pelo governador Jorginho Mello. Agora, as janelas são verdes. Foto: Divulgação.

Construída entre os anos de 1952 e 1954, a Casa d’Agronômica é a residência oficial do governador de Santa Catarina. O lugar com cerca de 50 mil metros quadrados tem um amplo jardim e muitas árvores, como pau-brasil, figueira, coqueiros, além de gramado e muros de pedra bruta. A edificação segue características coloniais portuguesas com intervenções do colonial espanhol. 

Localizada na rua Rui Barbosa, foi inaugurada em 1955 por Irineu Bornhausen, um político considerado com espírito modernizador. Até então, os governadores ocupavam o Palácio Cruz e Sousa, junto à Praça XV de Novembro.

Além dos Bornhausen, a residência abrigou as famílias dos governadores Jorge Lacerda, Heriberto Hülse, Celso Ramos, Ivo Silveira, Colombo Machado Salles, Antônio Carlos Konder Reis, Jorge Bornhausen, Henrique Córdova, Esperidião Amin, Pedro Ivo Campos, Casildo Maldaner, Vilson Kleinübing, Paulo Afonso Vieira, Amin de novo, Luiz Henrique da Silveira, Leonel Pavan, Raimundo Colombo, Eduardo Pinho Moreira e Carlos Moisés da Silva.

Atualmente é ocupada pela família do governador Jorginho Mello (PL). No começo, a edificação era conhecida como Palácio D’Agronômica, mas um de seus moradores ilustres, o governador Luiz Henrique da Silveira, decidiu por uma alteração para Casa D’Agronômica.

A sobremesa que adoçava o poder (e os jornalistas, quando convidados)

Uma sobremesa marcou época nos almoços e jantares da Casa d’Agronômica: uma deliciosa torta de sorvete, que Dona Lena chama de Sorvetão com caramelo. A reportagem pediu a receita e compartilha para todos aqueles que sentem saudade da iguaria.

Sorvetão com caramelo

Receita de Dona Lena, cozinheira na Casa d’Agronômica.

Modo de fazer: em uma panela colocar duas latas de leite condensado, um litro de leite, quatro gemas peneiradas (sem clara), quatro colheres de amido de milho, uma colher de sopa de extrato de baunilha. Misture tudo e coloque no fogo para dar consistência de mingau (bem grosso!). Separar numa vasilha e deixar esfriar. 

Pegue uma panela pequena e leve ao fogo com algumas colheres de açúcar e um pouco de água. Vá mexendo até dissolver. Observe o ponto até a calda ficar com cor de caramelo. Em seguida, caramelize uma forma com furo no meio e deixe em separado.

Bata as quatro claras em neve bem firme e junte quatro colheres de açúcar e duas caixinhas de creme de leite. Misture com o creme já feito, que deve estar frio. Coloque na forma já caramelizada, cobra e ponha na geladeira. Procure deixar algumas horas. Para servir, despeje num recipiente de vidro ou porcelana.

A lição de Dona Lena: A vida na Casa d’Agronômica é transitória. Vale para todos.

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