Aluísio Guedes Pinto escreve artigo sobre o Projeto de Lei 1.904/2024, conhecido como “PL do Aborto”, que restringe o aborto legal em casos de estupro após 22 semanas de gestação, o que chama de “retrocesso”.
O Projeto de Lei n. 1.904/2024, agora popularmente conhecido como “PL do Aborto”, busca introduzir mudanças impactantes no Código Penal em relação às possibilidades de aborto em gravidez resultante de estupro.
A intenção do projeto de lei consiste em prever que o aborto legal não pode ser realizado “quando houver viabilidade fetal, presumida em gestações acima de 22 semanas”. Se for realizado após esse período, mesmo em caso de gravidez resultante de estupro, o aborto será penalizado com a sanção aplicável ao homicídio simples (reclusão, de seis a vinte anos).
Desde quando foi promulgado, em 1940, o Código Penal prevê que não se pune o aborto praticado por médico se não há outro meio de salvar a vida da gestante ou se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou de seu representante legal. Mesmo promulgado há mais de oitenta anos, o Código Penal sempre garantiu às mulheres o direito ao aborto legal em caso de gravidez resultante de estupro.
Além disso, em 2012, o Supremo Tribunal Federal também considerou juridicamente admissível o aborto de fetos anencéfalos. Mais recentemente, provocou-se a discussão quanto à descriminalização do aborto nas primeiras 12 semanas de gestação, por meio da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442, a ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal.
O panorama é trágico: enquanto no mundo civilizado se discutem com seriedade as possibilidades de aborto legal e a sua regulamentação, parlamentares brasileiros apresentam um projeto de lei que representa nítido retrocesso em relação às conquistas já alcançadas, sobretudo quanto à evolução dos direitos das mulheres sobre o próprio corpo.
Na contramão da história, o PL 1904 coloca em risco a vida de milhares de meninas e mulheres que, além de já terem sido vítimas de um crime bárbaro, não terão mais a possibilidade de recorrer às vias legais para interromper a gravidez resultante de estupro. Como alternativa, essas vítimas se verão obrigadas, como já tem ocorrido com frequência, a recorrer a soluções clandestinas para dar fim à gravidez resultante de estupro, com todos os riscos aí envolvidos. E mais: além do óbvio risco à saúde decorrente tanto do estupro quanto do aborto, as vítimas dessas tragédias ainda se verão tratadas como se homicidas fossem – é o que se pretende por meio do PL 1904.
O projeto de lei em questão, além de ser historicamente anacrônico e de passar por cima de qualquer debate racional, ainda é traiçoeiro: embora preveja a viabilidade fetal para gestações acima de 22 semanas, a proposta trata tal limite como uma presunção. Assim, em tese, se as circunstâncias do caso concreto indicarem, mesmo antes das 22 semanas, que há viabilidade fetal, o aborto, mesmo em caso de gravidez resultante de estupro, também seria equiparado ao crime de homicídio.
Como acontece em relação a boa parte dos problemas sociais, a via criminal é apressadamente apresentada como uma solução. Monotônicos, muitos dos parlamentares brasileiros só veem uma solução: criminalizar. E defendem essa solução mesmo que ela nada resolva e, na verdade, apenas aprofunde ainda um problema trágico para o qual o Estado ainda não apresentou uma solução eficaz.
Enquanto o Congresso se embrenha em discussões anacrônicas quanto à criminalização do aborto, nada ou pouco se faz para combater o verdadeiro problema: a violência sexual, muitas vezes praticada dentro de casa, por familiares ou pessoas próximas à vítima.
Enquanto isso, o debate apressado passa por cima da vida que essas vítimas perdem, junto com os sonhos destroçados por uma gravidez não consentida, resultante de um crime bárbaro.
Aluísio Guedes Pinto é advogado.